quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Reflexões: Olhar uma urgência hospitalar a partir de uma maca

É um mundo estranho, o das urgências hospitalares. Idealmente estas seriam estruturas de resposta rápida, confortáveis, acolhedoras. Todos nós sabemos que a realidade se traça com tons carregados. Um pouco por todo o país.
Abro a porta do carro mesmo em frente à entrada principal do Hospital de S. Marcos numa destas noites frias e sinto dificuldade em passar por entre o aglomerado de pessoas que insiste em permanecer cá fora. Percebo de imediato porquê. Lá dentro não há mais espaço. A sala de espera está apinhada de gente. De doentes e de familiares; de pessoas com máscara e de outras com ar pálido. O serviço de triagem é rápido, mas aquilo que me espera do outro lado da porta é uma visão ainda mais intranquila. Há camas por todo o lado. Há pessoas sentadas em todas as cadeiras. A prioridade que me atribuem é alta, o que me subtrai tempo de espera. À porta de um dos consultórios, dois médicos trocam impressões sobre os doentes. Não há espaço para fazer isso noutro lugar.
Entro em diferentes salas para exames pontuais. Percebe-se que há uma preocupação em agilizar o trabalho. Nos minutos que fico de pé no corredor, socorro-me de uma maca, onde está deitado um doente, para me amparar um pouco. Outros pacientes fazem o mesmo. O médico que consulto acumula bastante experiência e, noto, um significativo cansaço. Olho à volta e sinto que não há muito mais a fazer para melhorar o atendimento naquele espaço tão exíguo. Mas os doentes continuam ali. Quase todos evidenciando grande aflição. É, de facto, premente fazer uma aposta inequívoca na saúde. Quem entra num hospital público, sente, por norma, que o serviço não serve as necessidades dos utentes. Poderia esta ser uma carência irrelevante, se não estivéssemos a falar da vida de cada um de nós.
Após uns largos minutos sentada num desconfortável banco, com o braço preso a uma garrafa de soro pendurada em equilíbrio precário num tripé de ferro, arranjam-me uma maca. Passo a olhar o corredor da urgência a partir de uma cama. Nunca tinha estado ali, assim. Vou olhando devagar o corrupio da Urgência. Com a minha cama encostada a um armário de arrumação de cobertores, eu lá me ia sentindo deslizar conforme as necessidades de roupa dos outros utentes e a disponibilidade dos auxiliares de acção médica para dar essa ajuda. Por uma vez, a cama movimenta-se com alguma impetuosidade para abrir espaço a uma outra maca que passa subitamente da ambulância do INEM estacionada na rua para a sala de reanimação situada à minha cabeceira. Sinto vários passos apressados em direcção a esse espaço. Não posso virar completamente a cabeça, mas percebo que se trata de um caso grave. A porta fechar-se-á com vigor segundos depois.
Impressiona acompanhar os movimentos daqueles corredores do alto de uma maca. Os médicos que caminham apressadamente de uma sala para a outra; os familiares dos doentes de olhos parados que sustentam com dificuldade as lágrimas; os doentes que se contorcem dolorosamente nas camas… No meio deste estranho ambiente, alcanço dois agentes da autoridade que vão chamando em voz baixa por um nome. Ninguém responde àquela chamada.
Viro a minha cara em direcção a uma sala donde saem pessoas que tiveram alta hospital. Agarrado a uma gasta bengala, um idoso arrasta-se com uma receita médica na mão. Parece estar sozinho. Sigo-o vagarosamente ao longo daquele corredor e perco-o de vista quando ele vira uma esquina em direcção à porta de saída. Passa da meia-noite. Será que aqueles previsíveis 80 anos correspondem a uma pessoa só naquela noite fria? Encostadas à minha maca, duas mulheres falam de uma familiar que ficará internada. À espera de uma intervenção cirúrgica. Uma delas chora. A outra já não. São vidas pesadas estas que se movimentam à minha frente.
É já muito tarde, quando ultrapasso a porta principal da Urgência do S. Marcos, com um quadro clínico estável. Tinha sido bem tratada, mas, naquela noite fria de Inverno, a temperatura gélida do exterior era, àquela hora, uma confortante almofada de bem-estar.

in.:http://www.correiodominho.com/cronicas.php?id=1182

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